A INCOMPATIBILIDADE DA DECISÃO DE PRONÚNCIA EM RELAÇÃO AO PROCESSO MODERNO
14/04/2014 15:00Dentro dos procedimentos previstos no Direito Processual Penal vigente no Brasil, há aquele aplicável aos crimes dolosos contra a vida, cuja competência para o julgamento é do tribunal popular do júri. O referido rito é partido em duas fases, sendo a primeira do sumário da culpa, onde prevalece o princípio do in dubio pro societate, e a segunda do julgamento pelo júri.
Ao final da primeira etapa do procedimento, cabe ao juiz togado, que presidiu a instrução, encerrar esta fase por meio de uma de quatro decisões possíveis: se entender pela existência da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz expedirá a decisão de ronúncia (artigo 413 do Código de Processo Penal); caso seu entendimento seja pela inexistência de um desses elementos, expedirá a decisão de impronúncia (artigo 414 do CPP); se entender pela inexistência do fato, pela falta de provas de autoria ou participação do réu, pela atipicidade do fato ou pela presença de causa de isenção de pena (salvo inimputabilidade) ou de exclusão de antijuridicidade, expedirá a absolvição sumária (artigo 415 do CPP); e, por fim, se for incompetente em razão da matéria, por entender não ser o crime doloso contra vida, expedirá a desclassificação própria (CPP 419 do CPP).
De todas as quatro decisões, a pronúncia é a única que, ao fazer a transição entre a primeira e a segunda fase, remete o julgamento do caso ao tribunal do júri. Ela não gera o efeito de encerrar o processo, mas encerra a primeira fase e dá início a segunda. Daí não ser tecnicamente correto designar-lhe de sentença, pois de fato ela é uma decisão interlocutória mista não terminativa: mista por estar no meio e efetuar a mistura das duas fases, e não terminativa por não por fim ao processo que seguirá o rito até o seu julgamento final pelo conselho de sentença.
A reforma implementada pela Lei Federal nº 11.689 de 2008, alterou a redação do artigo 478 do CPP para nele incluir como hipótese de nulidade o fato das partes, nos debates em plenário, fazerem referência à pronúncia como argumento de autoridade que venha a beneficiar ou prejudicar o réu.
Note-se a preocupação do legislador. O réu, ao ser pronunciado, segue para o julgamento pelo júri com uma valoração negativa, já colacionada aos autos, a respeito do fato por ele supostamente praticado. É evidente que referências feitas à Pronúncia não beneficiam ao réu, mas apenas o prejudicam perante os juízes leigos. Ora, se os jurados não precisam valorar as provas, podendo decidir pelo sistema da convicção íntima, sem qualquer fundamentação, imagine-se o efeito sobre eles se permitida fosse fazer referência à pronúncia que é uma decisão claramente contrária aos interesses do réu de ser absolvido.
A pronúncia é uma decisão em que o magistrado não deve (ou pelo menos não deveria) falar muito, não valorar além dos limites necessários à demonstração do seu convencimento, sob pena de julgamento antecipado no sentido de condenar o réu. O §1º do 413 do CPP diz que a “fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”.
Mas é aqui onde, ao nosso sentir, reside o problema, isto é, como demonstrar o convencimento, dentro do sistema da persuasão racional de valoração das provas, sem que se adentre na análise das evidencias e passe a valorá-las. Impossível. Logo, há um pré-julgamento condenatório do réu por meio da pronúncia, numa clara afronta a doutrina garantista, tanto que o legislador veio e, na tentativa de amenizar o fato, decretou como hipótese de nulidade fazer referência à pronúncia, nos debates em plenário, como argumento de autoridade.
Diante disso, somos da opinião de que a pronúncia deveria ser extinta do processo penal e do procedimento para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tendo em vista sua clara incompatibilidade com o modelo processual moderno. A transição da primeira para a segunda fase passaria a ser feita por um simples despacho de impulso oficial onde o juiz apenas declararia entender não ser o caso de impronúncia e remeteria o processo ao júri. Seria diminuída mais uma hipótese de cabimento do recurso em sentido estrito (que hoje é previsto como meio de impugnação à pronúncia), o que homenagearia a celeridade e a economia processual, e evitar-se-ia uma decisão valorativa, desfavorável ao réu, antes do momento adequado para o seu efetivo julgamento, no caso, pelo júri.
Tal despacho de impulso oficial não impediria a desclassificação imprópria, nos termos do artigo 418 do CPP, que poderia ser realizada, sem crise, de modo semelhante a emendatio libelli na sentença condenatória.
Michel Mascarenhas